XVI. A Entidade da Floresta
A floresta parecia pulsar com vida própria.
As árvores não apenas se moviam com o vento — elas murmuravam. Sussurros secos, feitos por vozes infantis distorcidas, como se os galhos fossem cordas vocais de uma entidade em sofrimento. A escuridão ali não era apenas ausência de luz — era uma presença, viva, opressora, espessa como carne crua.
O repórter caminhava com os passos pesados, a respiração ofegante, a câmera pendendo no ombro. A garota que o acompanhava, a câmera girl — Ayaka — surgiu do meio das sombras como se nunca tivesse se afastado dele. Ela o observava com um olhar inquieto, segurando uma pequena lanterna que oscilava, lançando feixes que não iluminavam — apenas mostravam o quanto tudo era mais escuro ao redor.
— Eu… eu te perdi — disse ele, assustado.
— Não. Eu estava seguindo você. Sempre estive — respondeu Ayaka, com uma expressão estranhamente neutra, como se aquilo tudo fosse normal.
Eles chegaram a uma clareira. E então viram.
Crianças.
Suspensas por ganchos de ferro presos em ossos expostos. Penduradas como se fossem pedaços de carne em um frigorífico. A pele de muitas delas havia sido arrancada, exibindo músculos abertos, pulsantes, algumas ainda se movendo.
Ao lado de cada corpo, uma data, entalhada na madeira — algumas antigas, outras muito próximas, talvez do próprio dia atual.
Algumas crianças ainda tinham olhos. Outras, não. Algumas sussurravam… “Me salva”… “Por que não parou?”… “Você viu, você viu…”
O repórter caiu de joelhos, vomitando no chão, a câmera tremendo em sua mão, mas ainda gravando tudo.
— Isso… não… pode ser real — disse ele, tremendo. Ayaka não se moveu.
Foi então que ouviram os estalos.
Braços tortos, pernas como as de um gafanhoto, mas cobertas de pelo negro, denso como o de um urso morto e molhado. Uma figura emergiu da mata.
Era feito de partes costuradas de crianças, com olhos piscando por todo o corpo, como se cada um enxergasse uma direção diferente. Os olhos estavam vivos, movendo-se freneticamente.
Sua voz era feita de vozes infantis sobrepostas, e mesmo que murmurasse, soava como um berro mental dentro do crânio deles:
“O CORAÇÃO DE VOCÊS É MEU… VOCÊS SENTIRÃO O PESO DO SACRIFÍCIO!”
Em suas mãos, uma foice feita de ossos amarelados e uma lâmina curvada, tão afiada que silvava ao cortar o ar.
Ele caminhava em direção aos dois. Ayaka não correu.
Ela encarava a criatura… e sorriu.
— Então é você… — sussurrou ela, como se estivesse falando com alguém familiar.
O repórter puxou Ayaka pelo braço, mas ela hesitou.
— Precisamos sair daqui! AGORA! — ele gritou.
Quando finalmente conseguiram correr, caíram em um barranco coberto por folhas escuras como fuligem. O repórter bateu a cabeça, desmaiando por um breve instante.
E quando acordou…
Estavam de volta à escola.
A escola abandonada que Yumi também passou.
Ele se levantou, cambaleando, tentando entender como tinham sido transportados dali. Ayaka parecia em transe, olhando para os corredores cheios de símbolos, marcas feitas com sangue, e o eco de um choro…
Eles encontraram uma das salas da escola com a mesma cena que Yumi não suportou. Uma sala escura com cadeiras amarradas com faixas de couro, objetos médicos enferrujados, e gravações com o título “Fase Três – Tentativa de Conversão da Alma”.
Não conseguiram abrir os vídeos, mas só os sons gravados de fundo — gritos de crianças e orações em línguas mortas — fizeram o repórter recuar e chorar.
Foi quando, entre as sombras, ouviram vozes conhecidas.
— Vocês viram também, não é?
— disse uma voz vinda do corredor, uma voz que parecia… familiar demais.
Mas… essa parte termina com a incerteza.
Um espelho no fundo da sala refletia os dois. Mas havia uma terceira figura ali com eles — mas não estava na sala. Apenas no reflexo.
XVII. Sayori, A Obsessão Oculta
O repórter ofegava ainda, escorado em uma das paredes sujas da escola abandonada. Seus dedos tremiam ao tentar recuperar as gravações da câmera, mas a imagem estava toda distorcida — como se a própria entidade tivesse contaminado a lente.
Sayori estava quieta, com os olhos fixos no quadro negro à frente deles, onde alguém havia escrito com sangue seco:
“Os olhos dela são a chave.”
— Sayori… você tá bem? — o repórter perguntou, pela primeira vez demonstrando verdadeira preocupação.
Ela não respondeu de imediato. Seus olhos estavam marejados, mas não de medo — havia ali algo mais profundo.
Depois de um tempo em silêncio, Sayori falou, sem olhar para ele:
— Você quer mesmo expor isso? Mostrar ao mundo?
— Claro. Se eu conseguir provar que existe algo além… esse Departamento Sobrenatural… tudo vai mudar. Eles mentem, manipulam… até mesmo aquela detetive que todos falam tanto — ele respondeu com raiva contida.
Foi nesse momento que Sayori o encarou pela primeira vez.
— Você fala como se ela fosse uma criminosa.
— Ela é chefe de uma divisão que esconde a verdade! — o repórter rebateu.
— Ela é a única que tentou proteger esse mundo, mesmo que tivesse que se sujar. — O tom de Sayori agora era mais firme, mais afiado. — Você nem sabe o que ela viu, o que ela perdeu…
O repórter ficou em silêncio.
Havia algo errado ali. Algo na expressão de Sayori. Ela sabia demais. Tinha informações que ele jamais compartilhara com ela.
— Por que você sabe tanto sobre Yumi? — ele perguntou com cautela.
Sayori se virou, seus olhos agora cheios de fúria contida e tristeza, e respondeu em voz baixa:
— Porque eu a admirei minha vida inteira… E estive perto dela sem ela saber. Ela salvou minha irmã.
— Como…?
— Yumi a tirou de um hospital quando ninguém mais ousava entrar. Quando minha irmã viu aqueles olhos… ela parou de gritar. Depois daquele dia, eu decidi que ia trabalhar perto da verdade. Me infiltrar… e entender o que ela tentava esconder. Você quis caçá-la. Eu… só queria ver ela mais uma vez.
O silêncio tomou conta da sala.
O repórter então percebeu — Sayori não era apenas uma assistente. Ela estava ali por um motivo muito mais íntimo e pessoal. Seu trabalho com ele era uma ferramenta, mas sua lealdade real… era a Yumi.
Antes que pudessem continuar a conversa, ouviram um som vindo de fora da escola. Pés na terra fofa, passos apressados e o estalo seco de galhos sendo quebrados.
Sayori correu até uma das janelas — e seus olhos se arregalaram.
Alguém caminhava entre a neblina da saída da vila.
Era uma mulher. Yumi.
Suja, cansada, mas de pé. Saía da floresta com duas crianças segurando suas mãos. Seus olhos olhavam ao longe, atentos, como se esperasse encontrar… alguém.
Sayori gritou antes de pensar:
— YUMI!!
O repórter a segurou pela cintura e a puxou de volta para dentro, assustado.
— Você tá maluca? E se aquilo ainda estiver por perto?
Sayori caiu de joelhos. Chorando. As mãos nos olhos.
— Ela tá viva… ela tá mesmo viva…
Do lado de fora, Yumi parou por um momento. Algo na brisa parecia ter trazido seu nome até ela. Ela olhou para trás, para a direção da escola…
Mas seguiu em frente.
O encontro ainda não era agora.
Mas estava perigosamente próximo.
XVIII. Gritos que Ecoam da Floresta
O solo da floresta ainda estava quente.
Não por vida — mas por raiva, por dor.
Sayori caminhava à frente, com os olhos ainda em lágrimas pela visão de Yumi instantes atrás. O repórter tentava entender tudo, sua mente lutando contra as imagens deformadas das crianças penduradas, da entidade, da escola maldita.
Foi então que ouviram.
Gritos.
Vozes infantis, mas não como antes — essas eram vivas, conscientes, desesperadas:
— VOCÊS…!
— VOCÊS VÃO SAIR SEM NÓS?
— COVARDES! VOCÊS VÃO DEIXAR A GENTE AQUI?!
As vozes saíam das próprias árvores, do chão, das raízes — como se o bosque inteiro estivesse gritando, pulsando ódio e dor.
Sayori caiu de joelhos, tampando os ouvidos. O repórter tentou puxá-la, mas seu próprio nariz começou a sangrar. O ar ficou denso como chumbo, difícil de respirar.
— AAAAARRRGGGHHHHHHHH!!!
A floresta tremeu. As copas das árvores dançavam com uma força invisível.
Foi então que a entidade apareceu — de pé, à distância, entre os troncos tortos.
Ela não falou. Apenas sorriu.
Mas o sorriso era largo demais, cheio demais de dentes, e parecia abrir o próprio tecido da realidade ao redor dela, fazendo o céu escurecer.
Sayori gritou.
O repórter a puxou e os dois correram pela trilha aberta.
Tropeçaram em raízes, galhos cortavam suas roupas, mas correram até avistarem a ponte.
— A… a ponte… — sussurrou Sayori, arfando.
Mas algo estava diferente.
A ponte não era apenas de madeira e cordas agora. Estava envelhecida, coberta por símbolos entalhados no próprio ar.
E um ser estava parado no meio dela.
Não falava. Não se movia.
Era encapuzado, com mãos finas como galhos secos, segurando um pequeno prato negro.
— …Uma moeda — sussurrou o repórter.
O ser inclinou a cabeça lentamente, como quem confirma.
Ambos tiraram qualquer coisa de valor: o repórter deu uma moeda antiga que sempre carregava no bolso. Sayori, um brinco de prata.
O ser recolheu.
E sumiu no ar, como poeira sendo levada por vento.
A ponte os deixou passar.
Do outro lado, não havia mais floresta.
Era a cidade.
Mas… estava deserta. Silenciosa. Somente o vento assoviando entre as casas esquecidas pelo tempo.
Sayori caiu de joelhos outra vez, exausta, e gritou com toda força:
— YUUUUMIIIIIIIIIIIIIIII!!!
O repórter fez o mesmo. O som ecoou como uma lâmina cortando o silêncio.
🕯️ Do outro lado…
Yumi andava em passos lentos com as duas meninas. O céu parecia mais claro, mas seu coração, mais pesado. Estava tentando entender o que a doutora Miyu havia dito, e o que significava o “coração da floresta”.
Então, ela ouviu.
— YUUUUUUUUMIIIIIIIIIIIIIIII!!!
A voz era como um sussurro ao longe… mas cortante como um grito de socorro.
Yumi parou. As duas crianças ao seu lado olharam para cima.
— Quem foi…? — perguntou uma delas.
Yumi apertou os olhos.
A voz era familiar.
— Sayori…? — ela sussurrou, surpresa.
— Eles chegaram, Yumi. — disse a outra menina, de forma calma, quase profética.
— A dor da floresta os deixou sair. Mas não estão limpos.
Yumi se virou.
Seu coração batia forte.
O destino estava chamando.
E os fantasmas do passado se aproximavam.
XIX. O Peso de Despertar a Entidade
A cidade estava quieta demais.
Nem o vento fazia barulho. O céu, preso num cinza doentio.
O repórter e Sayori andavam lentamente por uma rua que parecia abandonada há décadas. O grito que haviam dado na floresta ecoava em suas mentes, mas agora tudo ao redor parecia… irreal. Sujo. Desalinhado.
— Isso é… Yukigakure…? — murmurou Sayori, olhando para os postes caídos e as janelas pregadas com tábuas rachadas.
Eles viraram uma esquina. Foi aí que ela apareceu.
Yumi.
Com as roupas sujas, o rosto cansado, mas os olhos afiados como lâminas.
Estava com a arma em mãos. Tremia levemente, mas era firme.
— Você… — ela disse, mirando diretamente no repórter.
Ele congelou.
— Espere, Yumi, somos nós! Eu sou—
BANG!
O tiro cortou o silêncio como uma sentença.
O repórter gritou, caindo de joelhos, sangue jorrando de sua perna.
Sayori gritou:
— YUMI, NÃO!
Mas Yumi já se aproximava, arma em punho, olhos ardendo de raiva e decepção.
— VOCÊ ACORDOU A ENTIDADE! — ela gritou. — VOCÊ EXPÔS A FLORESTA, FEZ ISSO SEM SABER O QUE ESTAVA EM JOGO! A VILA TÁ EM CAOS! TEM CRIANÇAS PRESAS, MORTAS, GRITANDO, E VOCÊ ACHA QUE É UM JOGO PRA SUA REPORTAGEM DE MERDA?
Ela ergueu a arma novamente.
O repórter, mesmo sangrando, tentava se arrastar para trás.
— Eu… eu não sabia… era só… era só pra mostrar a verdade…
Yumi firmou os braços.
Mas então…
Sayori se colocou entre os dois.
Com os olhos marejados, respirando com dificuldade, ela disse:
— Yumi… sou eu. Sayori. Eu… eu sou sua fã. Sempre fui. Desde o caso de Sakuragami… eu te acompanho. Eu… eu só vim porque queria ajudar. Ele… ele não sabia o que estava acordando.
Yumi piscou. O nome… a lembrança…
Sayori, a estagiária da agência, a que deixava bilhetes de apoio na sua mesa, que desapareceu anos atrás…
O silêncio caiu.
Yumi abaixou a arma devagar, como se o peso dela tivesse se multiplicado.
— Sayori…? — ela murmurou. — …Você tá viva?
Sayori assentiu, segurando as lágrimas.
O repórter gemia no chão, pressionando a perna. Mas a tensão se dissipava, ainda que pouco a pouco.
Yumi olhou em volta. O ar parecia mais denso. O céu, mais escuro.
— Vocês… precisam sair daqui. Vocês não entendem… a floresta não perdoa. Ela não esquece. E agora ela… acordou.
Ela se virou, começando a andar.
— Aonde vai? — perguntou Sayori.
Yumi olhou por cima do ombro.
— Atrás de respostas. E de redenção.
XX. A Nova Vila
As nuvens rasgaram o céu como se tivessem sido cortadas por garras invisíveis. O chão tremia levemente, mas com constância, como se algo imenso estivesse despertando sob a terra.
Yumi, Sayori e o repórter mal conseguiram andar alguns quarteirões antes de perceberem o que estava acontecendo.
A vila estava se transformando.
As paredes das casas se esticavam como carne viva, crescendo janelas negras como buracos de crânios vazios. Telhados pareciam espinhos de pedra, e o chão, antes de terra e neve, agora ganhava tons avermelhados — como areia misturada com sangue seco.
Luzes piscavam nas ruas, mas não havia postes. Eram olhos. Olhos que surgiam das paredes, das portas, das sombras — observando tudo, sem piscar.
— O que é isso…? — sussurrou Sayori, com a mão na boca, em pânico.
O repórter tremia, olhando em volta, câmera ainda pendurada no ombro.
— Isso… não é arquitetura humana… isso é…
— Um reflexo do coração da floresta. — disse Yumi, fria, quase sem emoção.
— A vila está se moldando… ao sofrimento, ao medo. E agora que a entidade acordou, ela quer um novo lar. Um lar… feito de dor.
Ao fundo, gritos. Longos, finos, como lamentos de crianças. Sons de carne sendo cortada. Algo rastejava entre os becos.
Yumi se virou:
— Sigam-me. Agora.
Correram por becos que pareciam derreter, entre muros que respiravam como se estivessem vivos, até alcançarem uma das antigas casas que ainda mantinha um formato levemente humano — graças a uma barreira colocada por Miyuko.
Ali dentro, um estranho alívio — um espaço protegido. Havia lamparinas, colchonetes e alimentos enlatados. Tudo calmo, como uma bolha contra o inferno lá fora.
Sayori caiu de joelhos, ofegando.
Yumi se aproximou da entrada e deixou a porta entreaberta, observando com olhos atentos.
O repórter, por outro lado, pareceu finalmente respirar aliviado. Até que ela apareceu.
Miyuko.
Vestia um casaco branco que contrastava com o ambiente distorcido. Seu cabelo dourado estava preso em um coque solto. Os olhos azuis carregavam uma inteligência fria e uma beleza quase sobrenatural.
Ela surgiu pela escada interna, observando todos ali com olhar calmo.
O repórter ficou paralisado.
Sua boca se abriu levemente, olhos fixos nela como um adolescente diante de sua musa proibida. Sem pensar, tentou arrumar o cabelo, limpou o rosto e se aproximou.
— U-uh… você deve ser a doutora Miyuko, certo…? Eu… uau… eu ouvi falar tanto sobre você, mas nenhuma descrição faria jus…
Miyuko ergueu uma sobrancelha. O olhar que lançou sobre ele era como gelo cortando vidro.
Ela o olhou de cima a baixo, sem emoção, como se analisasse um objeto nojento caído no chão.
— E você deve ser o parasita que trouxe a desgraça até aqui. — ela disse, virando-se de costas imediatamente.
— Espero que sua perna apodreça… talvez assim aprenda a não pisar onde não foi chamado.
O silêncio foi brutal.
Sayori olhou o repórter e sussurrou:
— Acho melhor você… se manter discreto.
Yumi, por sua vez, cruzou os braços e encarou o repórter.
— Bem-vindo à vila verdadeira. Aquela que ninguém deveria ter encontrado.
Agora que você viu… vai ter que escolher.
Ou ajuda… ou morre aqui.