VI. A Voz do Espelho e a Presença da Verdade
O hospital estava mergulhado num silêncio quebradiço, como se cada parede escondesse gritos antigos que se recusavam a morrer. As luzes piscaram quando Yumi avançou pelos corredores. No caminho, encontrou uma pequena sala, com prateleiras cobertas de poeira e gavetas lacradas. Uma delas estava entreaberta.
Dentro, havia um computador portátil antigo, mas ainda funcional. Ao lado, um HD externo e vários discos rotulados com datas e códigos.
Yumi conectou o dispositivo. A tela tremeluziu… então surgiu uma pasta:
EXPERIMENTOS: Códigos Rejeitados
REGISTROS CLÍNICOS: Sala D
GRAVAÇÕES: Voz de Miyu Hiroto
Ela clicou.
Primeiro, imagens em vídeo. Crianças submetidas a procedimentos estranhos, algumas cobertas por marcas como raízes na pele. Outras tremendo, falando idiomas mortos. Algumas com olhos substituídos — os mesmos que viu anteriormente.
Então, a gravação.
“Esta instalação é o último abrigo. Não pelo que ela foi… mas pelo que ainda resta. Aqui, salvo aqueles que ainda podem ser salvos. Mesmo que isso custe minha vida.”
“Meu nome é Miyu Hiroto Shimawari. E se você está ouvindo isso… provavelmente, chegou até mim.”
A voz era firme, quase hipnótica. Mas onde ela estava?
De repente, Nana apareceu na porta da sala, séria.
— Eu estava aqui… quando ela chegou. Me encontrou, me levou, cuidou de mim. Salvou muitas crianças… essas que você viu.
Yumi se virou com os olhos marejados.
— Mas… por quê?
Nana respirou fundo.
— Isso… você precisa perguntar a ela.
Poucos andares acima, passos ecoaram.
Yumi, com o coração acelerado, correu até a fonte do som. Uma porta semiaberta… e dentro, vozes. Uma delas… fez sua espinha gelar.
Aquela voz.
Ela a conhecia. Não só pelos vídeos. Era como ouvir Aiko novamente.
Yumi forçou a porta. Lá dentro, uma mulher de costas conversava com uma adolescente. A postura da mulher era nobre, segura. O cabelo dourado escorria como seda. Seu jaleco branco ainda mais limpo que tudo ao redor. A adolescente tinha traços semelhantes aos de Aiko.
Yumi não aguentou.
— Aiko?!
A mulher se virou com calma. Sua presença paralisava tudo ao redor. Olhos azuis, como cristal cortante. A postura imponente fazia qualquer um calar. Ela era bela como uma escultura viva, mas havia algo em seu olhar… um peso… um cansaço de quem já enfrentou monstros e sobreviveu.
Yumi congelou. Nenhuma palavra saia de sua boca. Apenas lágrimas.
A mulher olhou diretamente para ela, então falou com voz firme e serena:
— Você chegou longe… Yumi Arakawa.
A adolescente virou-se, revelando um rosto idêntico ao de Aiko. A mesma suavidade. A mesma tristeza nos olhos. Mas não era ela.
Yumi caiu de joelhos.
— O que… o que é isso?
A doutora se aproximou, sem se abalar.
— Ela era a melhor amiga de sua irmã. Trabalhamos juntas… muito tempo atrás. Mas isso não é o que importa agora.
Yumi ergueu os olhos.
— Onde está a minha irmã?
Miyu suspirou, profunda e dolorosamente.
— Não aqui. Mas viva. E você precisa saber… sua irmã enfrentou os mesmos horrores que você. Ela tentou impedir tudo. Foi rejeitada como a primeira chave. Lutou para salvar as crianças. Assim como eu. Por isso fui caçada.
Yumi tocou o chão, tentando absorver.
— Esse hospital… não é o mesmo?
— Não. Este lugar está fora da vigilância deles. Foi abandonado antes do colapso da cidade. E eu o reativei para continuar os testes. Estou procurando uma cura. Uma maneira de reverter os efeitos da infecção… e da entidade.
Ela olhou para a adolescente ao seu lado.
— Esta menina… perdeu os pais. Foi deixada para morrer. Sua semelhança com Aiko é uma coincidência cruel. Mas ela tem algo especial. E talvez… a chave que faltava.
Yumi recuou. Tudo que achava entender… estava se desfazendo.
— E a floresta? Por que tudo começa e termina nela?
Miyu andou até a janela, encarando as árvores emaranhadas pela escuridão.
— Porque a floresta não é um lugar, Yumi… é o sacrifício em si.
É onde as memórias morrem…
E os verdadeiros horrores nascem.
VII. Vozes Que Sobrevivem ao Vento
As crianças correram para os braços da doutora Miyu assim que a viram. Seus olhos antes desconfiados agora brilhavam com algo raro: confiança verdadeira. Miyu ajoelhou-se, abraçando cada uma delas como se fossem parte do seu próprio corpo, do seu próprio coração. Aquela mulher imponente e fria aos olhos de todos… ali se revelava como refúgio.
Yumi permaneceu parada, observando.
A doutora então se levantou, sorriu com leveza, e conduziu todas até uma sala protegida, onde suprimentos e algumas refeições improvisadas estavam dispostas. Em silêncio, Yumi sentou-se numa cadeira ao fundo. A doutora a observava discretamente, até que se aproximou e perguntou:
— Quer descansar um pouco? Você parece… esgotada.
Yumi balançou a cabeça em negativa. Seus olhos não conseguiam se afastar dela.
— Não é isso… — disse, com um sorriso involuntário. — É que… você é tão linda. É estranho, mas… eu não consigo parar de olhar pra você.
A sala ficou em silêncio.
A doutora abaixou os olhos por um instante. Um calor discreto tocou seu rosto — algo que há muito não acontecia. Então, sentou-se diante de Yumi, com delicadeza. Seus olhos azuis, ainda que fortes, pareceram tremer por dentro.
— Você sorri… igual a ela — murmurou, mas em seguida desviou, voltando ao tom neutro. — Vamos falar do que importa agora.
As crianças, sentadas próximas, ouviam atentas. Algumas seguravam as mãos de Miyu, como se o simples toque as mantivesse seguras.
A doutora então continuou:
— Yumi, você sabe algo sobre seus pais?
— Quase nada… minha irmã nunca falou. Eles desapareceram quando eu era muito nova.
— Eles não desapareceram… foram levados. Seus pais eram pesquisadores. E dos bons. Eles estavam entre os primeiros a descobrir os efeitos do vírus atmosférico em Yukigakure. Mas tentaram alertar… foram silenciados.
Yumi arregalou os olhos.
— Você está dizendo que eles…
— Foram vítimas do primeiro grande ritual. A cidade precisava de sacrifícios. Humanos com “sangue capaz de sustentar a conexão”. Seus pais tinham isso. E vocês herdaram.
Nana, que até então estava calada, falou:
— A doutora me contou… que sua irmã tentou impedir esse ciclo.
— Aiko… — sussurrou Yumi, com a voz fraca.
— Sim — disse Miyu. — Ela tentou salvar outros. Por isso foi marcada. Por isso foi caçada. Mas ela sobreviveu por um tempo… até que desapareceu. E agora, tudo aponta que ela esteja viva. Em algum lugar ainda mais profundo da floresta. Talvez… no coração dela.
Yumi olhou para a doutora. Sua presença era tão reconfortante que pela primeira vez, desde que tudo começou, ela se permitiu chorar. Em silêncio. Apenas lágrimas, sem som.
A doutora estendeu a mão. Yumi a segurou. E pela primeira vez, não teve medo.
— Vamos levá-las até lá — disse Miyu. — Mas o caminho não será fácil. Essa parte da floresta… é viva. Ela sente. Ela rejeita. Ela se alimenta do que você sente por dentro.
Nana sussurrou:
— É o lugar onde as memórias se contorcem.
Yumi se levantou.
— Então vamos. Eu vou até o fim.
Enquanto arrumavam mochilas, suprimentos e registravam a rota no mapa antigo da doutora, as crianças começaram a conversar com ela, animadas. Contavam como sobreviveram. Como se lembravam dela cantando baixinho quando estavam feridas. Uma das menores abraçou Miyu e disse:
— Você parecia uma estrela no escuro.
A doutora sorriu, raramente sorria assim. Mas Yumi percebeu… naquele sorriso havia dor.
Yumi aproximou-se da porta, já pronta para partir. Olhou para Miyu.
— Por que você ajuda essas crianças?
Miyu respirou fundo.
— Porque um dia… ninguém me ajudou.
Silêncio.
Então, elas partiram rumo à floresta adormecida.
A trilha não existia. As árvores pareciam se mover. O frio era mais denso. E tudo parecia observar. Mas entre elas, havia uma centelha.
Elas não estavam mais sozinhas.
VIII. A Presença que Observa
Yumi observava a doutora Miyu com olhos fixos. Havia algo nela que ia além da beleza – algo ancestral, oculto sob a pele impecável e o tom calmo de sua voz. Era como se ela pertencesse a outro tempo, ou estivesse presa a ele.
— Você… é tão linda — murmurou Yumi, quase sem perceber. — Não consigo parar de olhar.
A doutora sorriu com gentileza, mas seus olhos azuis se turvaram por um instante. Ela se lembrava de Aiko dizendo exatamente a mesma coisa, anos atrás, durante um experimento que quase saiu do controle.
— Você me faz lembrar dela — respondeu Miyu, desviando o olhar.
As crianças, sentadas próximas, cochichavam entre si em um idioma estranho, mas suavemente distorcido. As palavras se contorciam como serpentes no ar, e mesmo sem compreender, Yumi sentia o peso delas em sua mente. A atmosfera parecia tremer. A floresta, mesmo do lado de fora, parecia escutar cada som que faziam.
— Essa floresta não é apenas floresta — disse Nana, fitando o vazio. — Ela está viva… e nos observa.
Miyu assentiu. — Esta região foi moldada por rituais antigos, muitos dos quais foram esquecidos de propósito. As árvores, o solo, o vento… tudo é testemunha e parte da entidade que adormeceu aqui. Vocês não estão andando sobre terra firme… estão caminhando sobre as veias de um ser que não deveria existir.
Yumi engoliu seco.
— E meus pais? Por que os nomes deles estavam naquele relatório? Por que estavam como líderes?
A doutora hesitou por um segundo, e depois se levantou, caminhando até um armário escondido sob placas soltas de madeira. De lá, retirou uma caixa de metal enferrujado. Dentro, arquivos manchados de sangue seco e uma foto: Hiriko e Salazar Arakawa em trajes cerimoniais, sorrindo em frente a um símbolo entalhado em ossos.
— Eles iniciaram o Projeto Raiz — disse Miyu. — Um plano para purificar a cidade usando o sofrimento das crianças. Disseram que era para encontrar a cura para o vírus que distorce a alma. Mas era uma mentira. Eles queriam libertar algo. E você… você era a segunda oferenda.
O chão pareceu sumir sob os pés de Yumi. As crianças, agora próximas à porta, começaram a murmurar em uníssono, olhando para o teto como se algo se mexesse lá em cima. Um ruído semelhante a carne sendo arrastada soou distante.
Miyu se aproximou de Yumi e, segurando seu rosto com delicadeza, disse:
— Não tema sua origem, Yumi. O que você é… ainda está adormecido. Mas logo, muito logo, será acordado.
IX. Vozes que o Tempo Enterrou
Yumi permaneceu em silêncio por um longo tempo após ouvir sobre o Projeto Raiz. Aquelas palavras ecoavam como um mantra perverso dentro de sua mente. Mas antes que pudesse mergulhar novamente em pensamentos sombrios, Nana quebrou o silêncio.
— Doutora… Por que você decidiu ficar? Mesmo sabendo o que havia aqui?
Miyu, sentada de pernas cruzadas, com as mãos repousando sobre os joelhos, olhou para as duas meninas. A luz bruxuleante do lampião revelava sombras estranhas nas paredes do hospital abandonado.
— Porque eu mesma nasci aqui — ela respondeu com calma. — E porque… eu também fui uma criança com olhos vermelhos, como vocês.
As duas se entreolharam, como se algo que já soubessem tivesse, finalmente, sido confirmado.
— Mas você cresceu, — disse Akari, olhando para o chão — nós não… crescemos.
Miyu assentiu lentamente.
— Algumas de vocês foram presas no tempo… condenadas ao estado da chave. Crianças especiais. Crianças que abriram portas demais, em mundos que não deviam existir.
Yumi, desconcertada, tentou intervir:
— O que você quer dizer com isso?
Nana, de forma quase profética, respondeu:
— Existem três tipos de tempo: o dos vivos, o dos mortos… e o da floresta. O da floresta não se move para frente ou para trás. Ele gira. E quando você gira demais algo que está ferido… ele se rompe.
Akari completou:
— Foi isso que aconteceu com Yukigakure. Um rompimento. Uma tentativa de salvar a cidade, que a deixou presa em um ciclo de sofrimento. Seus pais pensaram que poderiam controlá-lo… mas despertaram algo mais antigo.
Miyu olhou para Yumi, séria:
— Seus pais acreditavam que, ao sacrificar aquilo que mais amavam, poderiam refazer o tempo da cidade. Mas o tempo não se refaz. Ele cobra. E cobrou com a alma de Aiko… e quase com a sua.
Yumi se levantou, cambaleante. Seus pensamentos estavam confusos. Era como se o próprio ar estivesse mais denso. E pela primeira vez, ela sentiu: a floresta estava ouvindo. Cada palavra. Cada verdade. Como se esperasse que ela soubesse. Como se fosse parte do plano.
Nana então disse:
— Não tenha medo, Yumi. Você é a única que pode fechar a ferida.
— Ou abrir de vez — completou Akari, com um sorriso enigmático.
Yumi perguntou, com a voz trêmula:
— E qual das duas vocês querem que eu faça?
As duas se calaram. Mas ao fundo, um som estranho foi ouvido. Como um sino… enterrado embaixo da terra.
A doutora Miyu se levantou, caminhando até uma parede que parecia sólida, mas não era. Ela passou a mão e revelou um painel de madeira antigo, onde uma marca semelhante a uma espiral ensanguentada tremia, viva. Ela olhou para Yumi e disse:
— A resposta não está em nós. Está no lugar onde tudo começou.
Yumi respondeu, agora com firmeza:
— A floresta.
Miyu assentiu.
— Onde o tempo não existe. Onde o sacrifício se repete até que alguém o interrompa. Ou o aceite.
X. Vozes que o Tempo Enterrou
Yumi permaneceu em silêncio por um longo tempo após ouvir sobre o Projeto Raiz. Aquelas palavras ecoavam como um mantra perverso dentro de sua mente. Mas antes que pudesse mergulhar novamente em pensamentos sombrios, Nana quebrou o silêncio.
— Doutora… Por que você decidiu ficar? Mesmo sabendo o que havia aqui?
Miyu, sentada de pernas cruzadas, com as mãos repousando sobre os joelhos, olhou para as duas meninas. A luz bruxuleante do lampião revelava sombras estranhas nas paredes do hospital abandonado.
— Porque eu mesma nasci aqui — ela respondeu com calma. — E porque… eu também fui uma criança com olhos vermelhos, como vocês.
As duas se entreolharam, como se algo que já soubessem tivesse, finalmente, sido confirmado.
— Mas você cresceu, — disse Akari, olhando para o chão — nós não… crescemos.
Miyu assentiu lentamente.
— Algumas de vocês foram presas no tempo… condenadas ao estado da chave. Crianças especiais. Crianças que abriram portas demais, em mundos que não deviam existir.
Yumi, desconcertada, tentou intervir:
— O que você quer dizer com isso?
Nana, de forma quase profética, respondeu:
— Existem três tipos de tempo: o dos vivos, o dos mortos… e o da floresta. O da floresta não se move para frente ou para trás. Ele gira. E quando você gira demais algo que está ferido… ele se rompe.
Akari completou:
— Foi isso que aconteceu com Yukigakure. Um rompimento. Uma tentativa de salvar a cidade, que a deixou presa em um ciclo de sofrimento. Seus pais pensaram que poderiam controlá-lo… mas despertaram algo mais antigo.
Miyu olhou para Yumi, séria:
— Seus pais acreditavam que, ao sacrificar aquilo que mais amavam, poderiam refazer o tempo da cidade. Mas o tempo não se refaz. Ele cobra. E cobrou com a alma de Aiko… e quase com a sua.
Yumi se levantou, cambaleante. Seus pensamentos estavam confusos. Era como se o próprio ar estivesse mais denso. E pela primeira vez, ela sentiu: a floresta estava ouvindo. Cada palavra. Cada verdade. Como se esperasse que ela soubesse. Como se fosse parte do plano.
Nana então disse:
— Não tenha medo, Yumi. Você é a única que pode fechar a ferida.
— Ou abrir de vez — completou Akari, com um sorriso enigmático.
Yumi perguntou, com a voz trêmula:
— E qual das duas vocês querem que eu faça?
As duas se calaram. Mas ao fundo, um som estranho foi ouvido. Como um sino… enterrado embaixo da terra.
A doutora Miyu se levantou, caminhando até uma parede que parecia sólida, mas não era. Ela passou a mão e revelou um painel de madeira antigo, onde uma marca semelhante a uma espiral ensanguentada tremia, viva. Ela olhou para Yumi e disse:
— A resposta não está em nós. Está no lugar onde tudo começou.
Yumi respondeu, agora com firmeza:
— A floresta.
Miyu assentiu.
— Onde o tempo não existe. Onde o sacrifício se repete até que alguém o interrompa. Ou o aceite.