XV. O Instituto Kurihomi Sagukira
O som dos sinos finalmente cessou. O céu escurecia aos poucos, como se um eclipse estivesse se formando sobre a vila de Fuligem. Yumi andava ao lado da menina de cabelos vermelhos, a mão fria da criança entrelaçada à sua como gelo comprimido em ossos. Apesar da dor, ela não soltou.
A cada passo, as lembranças voltavam aos poucos, em fragmentos confusos e distorcidos.
A carta permanecia guardada no bolso do casaco, pesando como chumbo.
Chegaram diante de um velho portão de ferro enferrujado. Acima dele, letras quase apagadas denunciavam o nome:
“Instituto Infantil Pré-Escolar Kurihomi Sagukira.”
Yumi estremeceu.
— “Aiko…” — murmurou.
— “Ela estudou aqui. Lembro do uniforme… ela sempre reclamava das provas de lógica.”
Seu olhar varreu o pátio, onde os brinquedos estavam tortos e cobertos por teias, balançando sem vento.
A garota de cabelos vermelhos assentiu em silêncio, mas suas lágrimas escorriam de novo — brancas, espessas, como neve derretendo sob luz fria.
Yumi se abaixou, tirando do bolso um pequeno doce embrulhado. Era o último.
— “Você deve estar com fome…”
A criança pegou com mãos trêmulas, como se aquele gesto fosse a primeira gentileza em toda sua vida.
— “Eles não nos alimentavam… diziam que a fome ativava o dom.”
Ela sussurrou.
— “Quanto mais fraco o corpo, mais sensível à energia oculta…”
Yumi sentiu o estômago revirar de novo.
Entraram. O corredor escuro se estendia em linha reta, com salas dispostas dos dois lados. Os andares acima estavam acessíveis por uma escada de madeira velha, estalando com o tempo.
O instituto era dividido em três andares, cada um marcado por placas metálicas:
1º Andar: Seção Infantil Básica – Nível Q0
2º Andar: Seção de Adaptação Avançada – Nível Q1-Q3
3º Andar: Seção Experimental Cognitiva – Nível Q4+
Yumi olhou para cima e sentiu a pressão no peito aumentar. O ar parecia mais pesado conforme os olhos subiam para o terceiro andar.
Mas então, uma risada cortou o silêncio.
Alta. Fina. E… errada.
Como se tivesse sido gravada e reproduzida ao contrário.
Uma criança estava ali.
Bem no centro do pátio interno da escola, ao lado de um cavalinho quebrado.
Tinha cabelos prateados, pele pálida como pergaminho, olhos fechados… e um sorriso esculpido no rosto, imóvel.
Ela girava em círculos, cantando uma canção que parecia não ter língua conhecida, apenas sons rítmicos e agudos que doíam nos ouvidos.
Yumi congelou.
— “…Eu conheço essa garota…” — murmurou.
— “Ela me falou… na beira do lago… Quando tudo ainda estava começando…”
A menina de cabelos vermelhos tremeu e se escondeu atrás de Yumi, apertando sua mão com mais força.
— “Ela não devia estar aqui… essa criança morreu no experimento do Selo Inverso. Ela não existe mais.”
A risada parou abruptamente.
A garota prateada abriu os olhos.
Verdes. Sem pupilas. Apenas jade puro.
Ela apontou para Yumi e falou, com voz duplicada, como se duas entidades falassem em uníssono:
— “A terceira chave já está acordada. As outras vão seguir. Mas você, Yumi… você já passou da porta.”
— “O que… você quer dizer com isso?” — perguntou Yumi, com a garganta seca.
A menina prateada sorriu mais uma vez.
— “O Instituto foi apenas o começo. A verdadeira escola… está no subsolo. Aiko grita até hoje… Mas o tempo não anda mais para ela.”
As luzes da escola piscaram.
As sombras nas paredes se moveram como se estivessem vivas, arrastando algo consigo, como memórias ou almas.
Do teto, pingos caíam, mas não era água — era sangue.
A menina prateada voltou a girar lentamente, cantando a mesma canção indecifrável.
Yumi deu um passo para trás, ainda segurando a outra criança.
— “Vamos procurar esse porão. Rápido.”
A outra assentiu. Mas antes que subissem as escadas em busca de pistas para o acesso ao subsolo, a menina prateada gritou:
— “Vocês não são as únicas aqui. A diretora ainda está viva.”
A voz ecoou por todo o prédio. As janelas vibraram. E o doce que a menina de cabelos vermelhos comia caiu no chão, dissolvendo-se como se fosse feito de cera…
XVI. O Porão Proibido
O corredor rangeu novamente sob os passos de Yumi, mas agora ela não se dirigia para cima. A escada de madeira que levava ao segundo andar estava diante delas, mas a criança segurou seu casaco com força e sussurrou, com olhos cravados nos dela:
— “Não suba… A resposta para a senha não está lá em cima. Ela está… abaixo.”
Yumi parou.
— “Você disse que a diretora está viva. Isso significa que há mais gente aqui?”
A menina apenas balançou a cabeça negativamente e apontou para uma porta enferrujada no final do corredor térreo, à direita da antiga secretaria.
Com um leve estalo, a maçaneta girou sozinha.
A porta se abriu lentamente, revelando uma escadaria de pedra antiga, escura e úmida. O cheiro era de ferrugem e podridão.
Yumi engoliu seco.
— “Como você sabe tudo isso? Qual é o seu nome?”
A criança parou antes do primeiro degrau, virou-se com suavidade e respondeu:
— “Meu nome é Nara… Nara Fukui. Meus pais me trouxeram para cá quando a escola prometeu que eu poderia “brincar com as estrelas.” Mas tudo que eu conheci foram agulhas, gritos… e escuridão.”
Yumi sentiu um aperto no peito.
A voz da menina era carregada de uma dor silenciosa, muito madura para alguém tão jovem. E mesmo assim, ela falava com firmeza.
Descendo os degraus, a escuridão engolia as duas aos poucos. Nara, à frente, parecia conhecer cada passo, como se seus pés já tivessem trilhado aquele caminho mil vezes.
— “Nara… você estava nos experimentos?”
— “Sim. Mas escapei. Fui a única do meu grupo que não explodiu por dentro.”
Yumi parou abruptamente.
— “Explodiu?”
A menina apenas acenou com a cabeça.
— “Eles colocavam sementes de vidro nas crianças. Diziam que era para ver o que cresceria dentro delas. Algumas sementes nunca floresceram. Outras… se transformaram em monstros.”
O corredor abaixo do instituto se revelava em passagens estreitas de pedra. As luzes não funcionavam, mas o chão ainda tinha marcas de rodinhas de macas, e manchas negras por todo lado.
No fim, encontraram uma porta de metal com um painel digital antigo e rachado. Acima, uma placa:
ACESSO AUTORIZADO SOMENTE PARA A DIREÇÃO – SUBNÍVEL Q7.
Yumi encostou a mão no painel, mas ele estava travado.
— “E a senha?”
Nara encostou-se à parede, respirando fundo.
— “Ela muda a cada ciclo… mas há sempre um fragmento deixado nos ecos.”
Ela colocou a mão no concreto e começou a sussurrar algo. Sua voz ecoou de maneira estranha, como se várias vozes sussurrassem com ela em uníssono.
“Densetsu no yuki no me – 0131”
O painel apitou. Um som metálico e agonizante soou quando as engrenagens da porta se destravaram.
Yumi olhou para Nara, surpresa.
— “Como você sabia disso?”
— “A senha está nas lembranças das crianças que foram esquecidas… Mas eu nunca esqueci nenhuma.”
A porta se abriu, revelando um corredor ainda mais profundo, iluminado por uma luz azulada fraca que parecia pulsar como um coração.
No chão, cápsulas quebradas.
Nas paredes, marcas de unhas.
E mais à frente… portas numeradas.
Cada uma tinha um visor com um nome, e uma luz vermelha acesa.
Yumi se aproximou de uma delas.
“SUJEITO 047 – A. Fukui”
Ela sentiu a respiração parar.
— “…É você.”
Nara não respondeu. Apenas caminhou em direção à última porta do corredor.
“SUJEITO 001 – PROJETO CHAVE ORIGINAL.”
Yumi ficou atrás.
— “Nara… o que eles fizeram com você? Por que… você está viva?”
A menina virou-se, com lágrimas brancas escorrendo novamente.
— “Porque eu era o molde. A primeira tentativa de entender o que é… uma chave.”
A luz no teto piscou.
Sons começaram a ecoar pelos alto-falantes quebrados — gravações antigas de médicos discutindo em frenesi:
“O tempo está instável…”
“Ela não envelhece. Nenhuma função vital alterada.”
“As chaves não podem morrer. Mas podem esquecer…”
“Yumi… Aiko… protótipos posteriores… falhas… ou sucesso?”
Yumi cambaleou para trás.
E então a carta em seu bolso queimou como se tivesse sido colocada no fogo.
Ela a puxou — o selo já estava rompido.
Mas antes que pudesse abrir, as luzes se apagaram completamente.
E algo… se mexeu dentro do corredor.
Um som molhado, como carne sendo arrastada.
Nara olhou para ela e sussurrou:
— “Não leia agora. Se abrir, as lembranças retornarão. E com elas… tudo o que foi esquecido… também.”
XVII. A Sala da Chave Original
As luzes se apagaram de vez.
O silêncio no subsolo se tornou sufocante, espesso… como se o próprio ar estivesse sendo devorado.
Yumi segurava a carta com força, mas não a abriu. A voz de Nara ainda ecoava em sua mente:
“Se abrir, as lembranças retornarão… e com elas, tudo o que foi esquecido…”
Ela deslizou o papel amassado de volta ao casaco, acalmando a respiração.
Ao lado, Nara, olhos voltados para a escuridão adiante, levantou a mão — e no mesmo instante, uma tênue luz azulada emergiu das paredes.
Era como uma reação do próprio lugar à sua presença.
A porta com a inscrição “SUJEITO 001 – PROJETO CHAVE ORIGINAL” se abriu sozinha.
Yumi entrou. A sala era circular, com tubos de vidro quebrados, estantes com arquivos mofados e marcas no chão em espiral, como símbolos esquecidos de uma linguagem ancestral.
No centro, um altar de pedra com marcas de contenção.
Acima dele, uma estrutura de ferro pendia do teto com cintos de couro rasgados — claramente usada para conter algo… ou alguém.
Yumi se aproximou, tocando um dos arquivos abertos:
“Chave Original: Nascida antes da neblina. O corpo não rejeita Dekumari. É o elo entre o sangue e o ciclo.”
Ela recuou.
— “O corpo… não rejeita?”
Nara confirmou, apontando para si.
— “Eles tentaram usar minha alma para prender a entidade. Mas eu não era suficiente.”
— “Por isso buscaram minha irmã… Aiko.”
Nara assentiu lentamente.
— “E depois… você.”
Enquanto Isso…
Do outro lado da floresta, a neblina começava a se agitar.
Um grupo emergia da névoa espessa — homens e mulheres antes dados como desaparecidos.
Entre eles, o investigador Kenji, a enfermeira Rika, e o velho Sr. Tetsuo, que todos acreditavam estar morto há anos.
Os olhos deles estavam vazios… mas suas pernas se moviam com precisão.
Guiados por algo.
Uma voz.
O céu acima da vila chamada Fuligem se tornava mais escuro, como se o sol estivesse sendo engolido.
No topo de uma colina, três figuras encapuzadas os observavam.
Uma delas sussurrou, numa língua antiga:
— “A Chave abriu a porta da Memória.”
— “Logo… o Guardião será libertado.”
— “Sigam-na. Yumi não pode se lembrar por completo…”
De Volta ao Subsolo
Yumi pressionava os dedos contra a tábua de registros. Imagens começaram a projetar-se nas paredes da sala.
Eram experimentos. Crianças sendo presas, colocadas em água gelada até seus corações pararem. Outras, forçadas a olhar fixamente para símbolos gravados em fogo… até seus olhos escurecerem e seus corpos se retorcerem.
Nara tremeu, abraçando o próprio corpo.
— “Eu vi todas morrerem… Uma por uma.”
Yumi então notou algo.
Atrás do altar, escondido por uma placa caída, havia um espelho coberto por sangue coagulado.
Ela limpou lentamente.
O reflexo mostrou o que não estava ali.
Aiko.
Presa numa sala congelada, com os olhos fechados.
Ainda com 13 anos.
Sozinha.
No canto do reflexo, havia uma data… 24 de Janeiro de 2030.
Mas aquele dia ainda não havia chegado.
— “O tempo está quebrando…” — murmurou Yumi.
Nara aproximou-se do espelho.
— “Ela está no andar mais profundo do hospital… mas a chave para libertá-la está com a diretora.”
Yumi virou-se:
— “A diretora ainda está viva?”
— “Não exatamente… Mas parte dela está.”
Antes que pudesse perguntar mais, o espelho se estilhaçou.
A sala inteira tremeu.
Um estrondo, como um grito vindo debaixo da terra, ecoou por todos os corredores.
Enquanto Yumi Dormia
As duas crianças a carregaram juntas até um antigo sofá coberto por uma lona empoeirada.
Nara se sentou ao lado, limpando o suor da testa de Yumi.
Akari ficou em pé, encarando o teto descascado.
— “Nana…” — disse Akari, num sussurro.
— “Você vai contar por que tudo isso está acontecendo?”
Nara demorou para responder. Seus olhos vagaram até o pen-drive, agora repousando em cima da caixa com registros.
— “Não. Não agora. Ela precisa montar as peças sozinha. Se revelarmos tudo, o colapso mental vai ser inevitável. Ela pode não suportar.”
Akari apertou os dedos.
— “Mas e a irmã dela? A coisa que estava aprisionada? Ela foi libertada… por causa daquele maldito repórter que invadiu o hospital.”
— “Aiko ainda está viva. Mas… não totalmente humana. Depois dos experimentos com o tempo… ela parou de envelhecer. Parou de dormir. Parou de sentir dor.”
Akari encarou Yumi adormecida.
— “Elas são gêmeas. Mas só uma das duas é a chave real. E não sabemos qual.”
A porta do porão estalou.
As meninas se calaram.
Passos.
Lentos.
Pesados.
Molhados.
O som vinha de cima, escorrendo pelas paredes como uma promessa de terror.
Yumi abriu os olhos.
As duas crianças se viraram lentamente para a escada.
O som dos passos… não era humano.
Yumi tentou se levantar, mas ainda estava fraca.
A escada estalou com o peso de algo que se aproximava.
Nara se adiantou e ficou entre Yumi e a porta.
Akari pegou um ferro enferrujado e apertou com força.
— “Não… pode ser… ele.”
Yumi olhou para o topo da escada.
Uma sombra… um corpo esguio, com membros alongados, entrou na visão.
Os olhos brilhavam como cacos de vidro. A pele parecia costurada.
E então…
Ele sussurrou.
“A última peça foi movida.
O jogo começa agora.”
XIX. O Porão Proibido (continuação)
O som da fechadura antiga rangendo ecoou pelo corredor como um lamento ancestral.
A porta se abriu com dificuldade, revelando um porão coberto de mofo e poeira. O cheiro de ferro era tão intenso que parecia recente. Como se o passado ali nunca tivesse terminado.
Yumi deu o primeiro passo, sentindo um calafrio subindo pela espinha até o couro cabeludo.
A lanterna tremia em sua mão.
As crianças seguiram atrás em silêncio. Akari fechou a porta assim que passaram.
Uma estante de metal escurecido exibia caixas lacradas com selos do antigo Instituto.
Yumi se ajoelhou diante da maior delas. Com as mãos trêmulas, puxou a tampa…
Papéis. Registros. Fotografias queimadas nas bordas.
Na primeira folha em destaque:
PROJETO DE COMPATIBILIDADE PSIQUÊ/ENTIDADE – SÉRIE INFANTIL
Pacientes do Lote 013 – Classificação ALFA: Alta Resistência ao Desmembramento Neural
Processos Utilizados: Separação de escalpo, injecção de tecido animal bovino modificado, controle de dor artificial via código sonoro (falho).
Yumi sentiu a bile subir na garganta. Jogou-se para o lado, vomitando com força.
Mas o que saiu não era comida. Não era bile. Era… algo denso, liso.
Ela puxou, engasgada — um fio de cabelo amarelado, preso a um pequeno pen-drive ensanguentado.
Nara correu com um saco plástico.
Yumi jogou tudo ali dentro, tentando respirar. Os olhos lacrimejavam de desespero.
Ela voltou ao arquivo. Precisava continuar, mesmo que sua alma gritasse.
Líderes de Pesquisa do Núcleo Arakawa:
– Dr. Hiriko Arakawa – Setor Químico-Genético
– Dra. Salazar Arakawa – Núcleo de Manipulação Cognitiva Infantil
A visão de Yumi escureceu.
Os nomes de seus pais.
Liderando o projeto.
Autorizando a lista.
Autorizando os experimentos.
Ela caiu de joelhos. As letras flutuavam. O papel escorregou de suas mãos.
O mundo ao redor girava…
E então, desmaiou.
Enquanto Yumi dormia, as duas crianças a carregaram juntas até um antigo sofá coberto por uma lona empoeirada.
Nara se sentou ao lado, limpando o suor da testa de Yumi.
Akari ficou em pé, encarando o teto descascado.
— “Nana…” — disse Akari, num sussurro.
— “Você vai contar por que tudo isso está acontecendo?”
Nara demorou para responder. Seus olhos vagaram até o pen-drive, agora repousando em cima da caixa com registros.
— “Não. Não agora. Ela precisa montar as peças sozinha. Se revelarmos tudo, o colapso mental vai ser inevitável. Ela pode não suportar.”
Akari apertou os dedos.
— “Mas e a irmã dela? A coisa que estava aprisionada? Ela foi libertada… por causa daquele maldito repórter que invadiu o hospital.”
— “Aiko ainda está viva. Mas… não totalmente humana. Depois dos experimentos com o tempo… ela parou de envelhecer. Parou de dormir. Parou de sentir dor.”
Akari encarou Yumi adormecida.
— “Elas são gêmeas. Mas só uma das duas é a chave real. E não sabemos qual.”
A porta do porão estalou.
As meninas se calaram.
Passos.
Lentos.
Pesados.
Molhados.
O som vinha de cima, escorrendo pelas paredes como uma promessa de terror.
Yumi abriu os olhos.
As duas crianças se viraram lentamente para a escada.
O som dos passos… não era humano.
Yumi tentou se levantar, mas ainda estava fraca. A escada estalou com o peso de algo que se aproximava.
Nara se adiantou e ficou entre Yumi e a porta.
Akari pegou um ferro enferrujado e apertou com força.
— “Não… pode ser… ele.”
Yumi olhou para o topo da escada.
Uma sombra… um corpo esguio, com membros alongados, entrou na visão.
Os olhos brilhavam como cacos de vidro. A pele parecia costurada.
E então…
Ele sussurrou.
“A última peça foi movida. O jogo começa agora.”
XX. Ecos do Inferno
Yumi acordou com um gosto metálico na boca e uma dor latejante na testa.
Ao notar o sofá antigo e as crianças sentadas no chão, ela rapidamente se ergueu — o instinto falou mais alto.
Puxou a arma.
— “Fiquem atrás de mim… alguém está subindo!”
Mas Akari levantou a mão.
— “Não vai fazer efeito, Yumi. Se for quem pensamos… isso não serve de nada.”
Yumi hesitou. A arma tremia em sua mão.
Ela girou a maçaneta e abriu a porta lentamente.
Nada.
Apenas a porta antiga se movendo com o vento de alguma janela mal fechada.
Mas… o som de antes. Os passos. Eles ainda ecoavam dentro da mente dela.
Yumi fechou a porta. O silêncio a esmagava.
— “Melhor você ver o que está dentro daquele pen-drive…” — disse Nara, com a voz baixa, quase como se não quisesse ouvir o que vinha a seguir.
Ela caminhou até uma mesa velha no canto. Um computador antigo, coberto por um pano de cor desbotada, estava ali. Ligou o monitor. Para sua surpresa… funcionava.
Conectou o pen-drive.
Duas pastas.
° VÍDEOS DE EXPERIMENTOS – ERROS E SUCESSOS
° SECRETO – SENHA REQUERIDA
Yumi clicou na segunda. O campo de senha apareceu.
— “A data da queda da cidade. 12/02/03.” — sussurrou Nara, quase como se recitasse um trauma pessoal.
Yumi franziu a testa.
Como ela sabia disso?
A pergunta queimou em sua língua, mas ela não a fez.
Não ainda.
Digitou a senha.
A pasta se abriu.
Primeiro, ela clicou nos vídeos da pasta comum.
Cenas gravadas em baixa resolução, mas nítidas o suficiente para enojar qualquer alma viva.
Crianças amarradas a macas.
Sons metálicos de serras.
Corpos pequenos tremendo. Choros abafados. Implorações.
— “…isso é…” — Yumi levou a mão à boca.
As crianças se encolheram.
Mas quando um novo nome apareceu no canto de um dos vídeos, ambas as meninas — Akari e Nara — se transformaram.
O rosto de Nara endureceu. Os olhos dela brilharam com uma fúria silenciosa.
Akari se levantou, cerrando os punhos com força.
Nome do vídeo:
Paciente K.10 — Submetida ao protocolo de obediência – Dr. Hironoko / Assistente: Kirara
— “Esse homem…” — murmurou Akari, com os dentes trincados. — “Ele era o pior de todos.”
— “Ele fazia coisas… que não dá pra dizer. Queimar a carne ainda viva… trocar os olhos por olhos de animais… colocava líquidos dentro do cérebro… E ria.”
Nara apertou os próprios braços, tentando se conter.
— “A filha dele… Kirara. Ela ajudava. Tinha a nossa idade. Mas sorria enquanto nos cortavam.”
Yumi sentiu a garganta fechar.
O silêncio foi quebrado.
De repente, mesmo com o vídeo pausado, ecos começaram a surgir nas paredes.
Gritos. Gritos de crianças.
Como se o próprio porão estivesse preso no tempo, revivendo eternamente os horrores.
Yumi queria sair. Mas… havia mais uma pasta.
Com mãos tremendo, clicou no último vídeo.
Nome do arquivo:
SACRIFÍCIO – Chave 2 – Ritual de União / Local: Montanhas sem Reflexo
As imagens se abriram com dificuldade. A gravação tremia, como se o ar fosse denso demais.
Yumi viu a si mesma, com olhos apagados, sendo levada por quatro pessoas de túnicas negras.
Um cálice negro foi forçado à sua boca. Um líquido espesso e escuro escorreu por seu queixo.
Ela estava viva, mas parecia… não estar ali.
Ao fundo, criaturas se moviam na escuridão, grandes demais para o espaço da caverna.
As montanhas geladas ao redor não refletiam nenhuma luz — como se absorvessem o mundo.
A gravação foi interrompida.
“Montanhas sem Reflexo…”
“Próximo da vila.”
Yumi se levantou, pálida. As meninas a observavam.
— “Eu… fui levada até lá. Isso realmente aconteceu.”
Akari assentiu.
— “Mas ainda não terminou. Você sobreviveu… porque resistiu ao veneno. Você… é a segunda chave.”
Yumi andou até a janela do porão. O céu estava escurecendo.
Mas não por causa do anoitecer.
Algo grande se aproximava.
As árvores se curvavam. O chão vibrava. Um som grave… como um canto antigo, começou a surgir nas montanhas.
Yumi sussurrou:
— “Eu vou até lá. Preciso entender. Preciso achar a minha irmã.”
Nara se levantou:
— “Então prepare-se, porque aquele lugar… não pertence mais a esse mundo.”
XXI. As Montanhas Sem Reflexo
O vento congelante cortava o ar como lâminas.
As três caminhavam lado a lado — Yumi, Akari e Nara.
Deixaram a vila silenciosa de Fuligem para trás, onde o cheiro de sangue ainda pairava no ar como uma névoa invisível.
O caminho até as montanhas era estreito, ladeado por árvores secas e tortas, como se o próprio bosque tivesse se curvado com o tempo e a dor.
Nenhum som de pássaro. Nenhum inseto. Nenhum sinal de vida.
A única coisa que parecia viva…
Era a própria escuridão.
Akari apontou adiante:
— “Ali… aquele desfiladeiro. A entrada está lá.”
Yumi parou por um segundo.
Uma sensação estranha percorreu sua espinha.
Como se já tivesse estado ali antes.
Nara tocou sua mão — ainda fria como antes, mas firme.
— “A gente vai estar com você. Até o fim.”
Yumi respirou fundo. Mas quando deu o primeiro passo em direção ao portal cravado nas rochas congeladas…
Um som. Passos. Muitos passos.
Elas se viraram.
Do topo da trilha, cinco pessoas encapuzadas vinham em marcha lenta, suas túnicas negras arrastando na terra.
Yumi recuou instintivamente.
Mas então…
um deles parou.
Levantou o rosto.
Era Hana, uma antiga detetive da delegacia, dada como desaparecida meses atrás.
A voz dela era calma. Mas os olhos estavam vazios, como se a alma tivesse ficado para trás.
Logo atrás dela, estavam Kaito, o perito, Takumi, o estagiário, e dois outros investigadores que também tinham sumido.
Agora estavam ali. Diferentes. Frios. Obedientes.
— “Por que estão aqui?” — perguntou Yumi, sentindo o coração acelerar.
Hana respondeu, sem emoção:
— “Estamos aqui… para guiar a chave. O ritual precisa ser completado.”
— “Eu não vou participar de nenhum ritual!” — gritou Yumi.
Kaito deu um passo à frente:
— “Você já participou. Só não se lembra de tudo. Mas as Montanhas vão ajudar com isso.”
— “Eles estão sendo controlados…” — murmurou Akari. — “Não são mais eles.”
Nara puxou Yumi para o lado.
— “Vamos, rápido!”
Começaram a correr em direção à entrada oculta nas montanhas.
Mas as vozes dos encapuzados começaram a se multiplicar, como ecos de todos os lados:
“A terceira chave precisa chegar…”
“O selo está se rompendo…”
“O dia final… está próximo.”
Quando Yumi e as meninas chegaram à fenda na pedra, o frio aumentou repentinamente.
O chão se rachava sob seus pés. Um brilho pálido emanava de dentro — mas não era luz. Era memória.
Era como entrar na mente da própria vila.
Ao entrarem, as vozes cessaram.
Do lado de fora, os encapuzados pararam e não avançaram mais.
Yumi olhou para trás, e por um instante, achou ter visto o rosto da irmã — Aiko — entre os vultos. Mas quando piscou… havia apenas névoa.
Dentro da caverna, uma estrutura negra, semelhante a um altar, surgia das pedras.
Ali… o mesmo símbolo que ela viu nas pastas de vídeos.
Ali ela havia sido levada.
No chão, desenhos circulares.
Runas. Marcas. Sangue antigo.
E o mais perturbador: havia duas figuras desenhadas em pedra.
Gêmeas.
Akari tocou a parede e sussurrou:
— “Está começando.”
Nara completou:
— “Se a terceira chave chegar… não haverá como voltar atrás.”
Yumi se aproximou do altar.
O símbolo brilhou levemente ao toque de sua mão.
E então, a voz.
Um sussurro feminino, vindo de dentro da rocha, tão frio quanto a neve:
“Você… não se lembra, mas já nos pertence. A sua irmã abriu o caminho. Agora, só falta você.”
Yumi caiu de joelhos. Lágrimas escorriam, misturadas com o sangue seco de sua testa.
— “Aiko… o que fizeram com você?”
A parede respondeu com um último sussurro antes de tudo silenciar:
“Ela ainda vive… mas para que isso continue, você terá que escolher: salvação ou verdade.”
A caverna tremeu. As pedras começaram a se mover, revelando uma escada espiral descendente.
As crianças se aproximaram de Yumi.
— “Agora começa a parte que você nunca quis lembrar…”
Yumi olhou para o abismo à sua frente.
E desceu.